12 junho 2013

Licenças poéticas



*Rogério Silva
Ao compor “Faltando um Pedaço”, Djavan disse o seguinte: Um lobo correndo em círculos pra alimentar a matilha. É claro que Djavan, sendo quem é, sabe perfeitamente que o lobo alimentaria uma alcateia. Da matilha, cuidaria o cão. Mas ele reconheceu que, melodicamente, não dava. Não tem espaço pra alcateia nenhuma, nem na voz do inquestionável Djavan.
Poetas, escritores e compositores dispõem de um artifício confortável chamado Licença Poética. Ela perdoa quase tudo. Passa a mão pela cabeça do maestro Tom Jobim em “Eu Sei Que Vou Te Amar”, quando ele declama E cada verso meu será… Note uma cacofonia bem fúnebre na formação de um cadáver, no meio da canção.
No samba, a marrom Alcione enche o peito para soltar Não posso mais alimentar a esse amor tão louco. Dói. Não no peito, mas nos ouvidos. Que “Sufoco!”. Pra quê esse “a”? “Esse amor” pode ser alimentado sem o artifício da preposição. Mas é bem provável que o compositor Chico da Silva tenha concluído que a melodia perderia uma liga, faltaria algo. Pense alto aí na letra Não posso mais alimentar esse amor tão louco. Para o Chico faria diferença. E olha a Licença Poética pedindo passagem aí mais uma vez.  
Arnaldo Antunes, por quem tenho profunda admiração, também dá sua contribuição ao rol de exemplos de Licença Poética em “Beija Eu”, que ganhou popularidade na voz de Marisa Monte. Ele defende que o título e o refrão são arte de sua então pequenina filha, que o fitava em diversos momentos balbuciando de forma infantil: Pega eu, abraça eu e beija eu.
A língua não fica mais pobre e nem a norma menos culta quando são invocadas situações dessa natureza. Na literatura, Machado de Assis escreve em “Uns Braços” a seguinte frase: “…criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o”.  Quis o escritor ser provocativo? Sabia que ali se empregaria “meio”, mas ainda assim quis enfatizar uma linguagem popular? É sabido que advérbio não se flexiona. Mas estamos falando de Machado de Assis, não se esqueça. A constatação pode ser feita em “Obras completas de Machado de Assis, volume 14 – Várias Histórias, p. 61”.
Brincar com as palavras, lançando mão de possibilidades fantasiosas para dar sonoridades às falas, às interpretações, às melodias e entonações, permite-se. Mas é apenas uma permissão, que não pode virar permissividade. Fiquemos apenas nos exemplos acima. Porque se formos partir para a pseudocultura, encontraremos casos escabrosos, infelizes desde o estado nascituro. Escondidas por trás de um rótulo “alternativo”, algumas letras do funk, do hip-hop, rimas do axé e até do sertanejo, abusam de nossa boa vontade. Vão da égua pocotó, passando pelo bonde do tigrão, desfilando pela sensualidade siliconada das mulheres frutas até… Não me arrisco dizer onde pode chegar.
Licença Poética é saudável, exercita a criatividade e nos faz pensar no porquê de ter sido feita. Devemos nos colocar no lugar do criador e imaginar o que se passava na cabeça dele ao optar por uma determinada expressão chocante. Questioná-lo acerca de uma possível ignorância talvez seja a sua intenção. Pô-lo em xeque, buscar a explicação para um tipo qualquer de irreverência, subversão.
Jogue no google uma dúvida dessas e talvez você ouvirá do próprio autor a justificativa, como fiz com o Djavan. Ele dá explicação da matilha de lobos. Mas como perguntar a Machado de Assis o motivo de suas meias? Ou ainda se Capitu realmente traiu Bentinho? É o mesmo que tentar decifrar o sorriso enigmático da Monalisa de Da Vinci.
Esses gênios nos confundem de propósito. 


(*) Rogério Silva tem 41 anos, é jornalista e administrador de empresas. Tem MBA em Gestão Executiva e Empreendedora, com extensão em liderança. Desde 2007 dirige as áreas de infraestrutura midiática e jornalismo da Rádio Educadora Jovem Pan e TV Paranaíba/Record, em Uberlândia, Minas Gerais - Colunista Semanal  do Blog  www.administrandohoje.blogspot.com.br